A roupa como manifesto: tendência ganha força no mundo pop

O figurino também é um meio de comunicação — e estrelas usam e abusam, como nunca, desse expediente para transmitir mensagens sociais e políticas

Beyoncé é para ouvir, mas é também para ver. Depois de seis anos longe dos palcos, ela estreou a Renaissance World Tour em maio, turnê que marca o triunfal retorno. Não só pelas músicas e coreografias. As canções têm ritmos adesivos, as danças são um convite a sair do chão. E o vestuário? Parte decisiva das mensagens da abelha-rainha do pop estão costuradas nas roupas, como manifesto colado ao corpo. Ao entoar Drunk in Love, ela veste um macacão brilhante da marca espanhola Loewe que faz referência ao quadro O Nascimento de Vênus, obra do século XV do italiano Sandro Botticelli. No renascimento de Beyoncé, o próprio figurino brinca de esconde-esconde com a nudez, promovendo equilíbrio irônico e espalhafatoso entre sensualidade e a atitude pudica. As mãos estampadas no traje, sinuosas, entre as pernas, evocam o empoderamento das mulheres negras.

SEM HOLOFOTE - Lady Gaga no Oscar: roupas de “gente normal” (Rich Polk/Variety/.)

O repertório do estilo de Beyoncé alinhava o dourado e o prateado com ares cibernéticos. De mãos dadas com os modelos do costureiro francês Thierry Mugler, ela grita na defesa da cultura LGBTQIA+ e do direito à identidade de gênero. É a embaixadora da causa com toda a pompa e circunstância — e não tem para ninguém. A badalada artista é porta-bandeira de um movimento bem-sucedido e barulhento. “A moda e a música são linguagens universais”, diz Brunno Almeida Maia, pesquisador em filosofia e teoria da moda da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Ambas têm a capacidade de sintetizar o espírito de um tempo e passar uma mensagem imediata.”

Há outras divas afeitas a mandar recados para além dos acordes, das harmonias e das letras de canções. No evento de coroação do rei Charles III, a americana Katy Perry fez a lição de casa ao utilizar um vestido dourado em estilo princesa inspirado em Grace Kelly (atriz que se casou com um príncipe), demonstração de seu apoio à monarquia britânica. Contudo, ela deu um pitaco paralelo: ao vestir uma roupa concebida pela estilista Vivienne Westwood, uma das principais criadoras partidárias do movimento punk, quis tingir o show de rebeldia. “Com esse visual, marcou território comunicando que dá para ser tradicional sem abrir mão da subversão”, afirma Almeida Maia, da Unifesp. Fez, a rigor, o que Lady Gaga esboçou na cerimônia do Oscar, ao moer as engrenagens por dentro — esperteza benigna, truque inteligente que só funciona mesmo enquanto os olhares se distraem com a elegância e a beleza no vestir. Em protesto contra a própria indústria cultural, Gaga surgiu envergando jeans rasgado e camiseta, como quem sai para ir ao mercado. Era um aviso para as pessoas prestarem atenção à música, não ao ídolo, que não raramente decai, no vaivém dos humores.

Nunca como agora, na ágora de reverberação das redes sociais, a moda serviu de instrumento de tradução das dores do mundo. Convém ressaltar, porém, ser um fio da meada que já anda por aí há algum tempo, agora fortalecido. Um passeio pela história ocidental ajuda a compreender essa costura. Nos anos 1950, de tabus ainda inquebrantáveis, Elvis Presley trocou as roupas formais por jeans, jaquetas de couro e peças chamativas que refletiam a rebeldia do rock’n’roll. No clima de pós-guerra, novos nomes da música mudaram o eixo da estética: era a vez de Estados Unidos e Reino Unido, em oposição ao classicismo da França. E nem foi preciso ser tão revolucionário assim: os terninhos de bons moços dos Beatles, modelados por Pierre Cardin, soavam pueris.

Na longa estrada que foi dar em Beyoncé, passando por Elton John, David Bowie, Freddie Mercury, Michael Jackson e Prince, ninguém ousou tanto e foi tão decisivo quanto Madonna durante os anos 1980 e 1990. Tê-la na tela de televisão, na capa de um disco, no tempo em que havia discos, ou em palcos, era como segurar uma bíblia de provocações. Madonna foi o big bang do que assistimos agora. Numa de suas imagens mais icônicas, como se fosse a Vênus de Botticelli transportada ao século XX, ela aparecia vestida com um corset em formato de cone feito por Jean-­Paul Gaultier — o enfant terrible das passarelas e muito mais, celebrado pelas criações fetichistas e contestadoras. A composição abriu a turnê Blond Ambition, de 1990, com a boca no trombone, valendo-se de um espartilho como sinônimo da opressão e de uma calça comprida como elemento do machismo dominante — durante muito tempo, lembremos, a peça foi vetada ao sexo feminino. Madonna se tornou um símbolo da liberdade de expressão. “Ela é uma das criadoras de estilo mais potentes do nosso tempo”, disse a editora e consultora de moda britânica Anna Wintour. Sem Madonna, vale insistir, não haveria mais nada.

As letras que não param de tocar no Spotify incomodam, os ritmos dissonantes mexem com tudo o que estava aí até outro dia — mas sem os trajes, em tempos tão visuais, pendurados no Instagram e no TikTok, a revolução não seria compartilhada. Diga-me como te vestes e te direi quem és. Ou, como ensinou o camaleão David Bowie, príncipe irrequieto da elegância, cuja androginia transbordava: “Estilo é o modo pelo qual se fazem escolhas destinadas a recriar os aspectos da civilização que você pretende defender”.

Publicado em VEJA de 14 de Junho de 2023, edição nº 2845

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