Por Juliana Belo Diniz
No início dos anos 1990 uma pequena revolução estava tomando de assalto o mercado de remédios antidepressivos ao redor do mundo. O Prozac, lançado alguns anos antes, no final da década de 80, virou uma febre entre os consumidores, com a promessa de combater a depressão e a ansiedade trazendo efeitos colaterais muito inferiores aos das drogas anteriores.
O uso desse tipo de antidepressivo – o Prozac é o nome comercial da fluoxetina, substância pioneira dos inibidores seletivos da recaptura de serotonina, ou ISRS – chegou a tal escala que começou a preocupar alguns especialistas.
Um deles era o psiquiatra americano Peter Kramer. Em 1993 ele lançou o livro Ouvindo o Prozac, no qual cunhou o termo “farmacologia cosmética”. A expressão traduz de que o uso dos ISRSs não com o objetivo de aliviar sintomas médicos, mas sim para melhorar o desempenho e a sensação de segurança de pessoas saudáveis.
Kramer temia que pessoas sem qualquer transtorno psiquiátrico recorressem ao Prozac como uma espécie de “pílula mágica”, na tentativa de se tornarem pessoas especiais, mais assertivas e seguras do que os seus pares.
A possibilidade de os ISRSs ocuparem esse espaço suscitava questionamentos morais. Seria ético fazer o uso de uma medicação para melhorar o desempenho e dessa forma privilegiar aqueles com acesso a esse tipo de intervenção?
Hoje, sabemos que essas preocupações sobre o uso indiscriminado e com intuito cosmético dos ISRSs foram reações um tanto exageradas. Ao contrário do que temia Kramer, os ISRSs não modificaram a sociedade a ponto de eliminar a insegurança e a melancolia da experiência humana nem melhoraram de forma significativa o desempenho intelectual das pessoas saudáveis.
Apesar do uso cada vez mais comum de antidepressivos, continuamos sendo acometidos por transtornos depressivos e ansiosos. Seguimos nos sentindo impostores e incapazes uma boa parte do tempo, como mostram as estatísticas relacionadas às doenças psiquiátricas.
Pílulas que aumentam a inteligência?
Mas se o termo “farmacologia cosmética” caiu em desuso por algumas décadas, ele parece estar voltando nos últimos tempos, ainda que não diretamente relacionado aos ISRSs. Agora, essa expressão pode ser usada para descrever o crescente do uso de medicações psiquiátricas por pacientes saudáveis com o objetivo de melhorar o desempenho cognitivo, ou seja, aumentar a inteligência.
De alguns anos para cá, tem sido constante o aparecimento de supostas “pílulas da inteligência”, capazes de melhorar a memória e a atenção. Uma das primeiras foi a modafinila, conhecida pelo nome comercial de Stavigile. A base da suposta melhora da inteligência vem de estudos científicos que mostram que o desempenho em testes neuropsicológicos parece melhorar quando as pessoas estão sob efeito da dessa substância.
Existem diversos tipos de testes neuropsicológicos. Os mais comuns avaliam a capacidade de relembrar uma sequência de números ou uma sequência de palavras. Eles também mensuram quanto uma pessoa memoriza, depois de um intervalo de tempo definido, detalhes de uma história ou de uma figura complexa. Também há testes desse tipo que avaliam a quantidade de palavras específicas que alguém se relembra – nomes de animais que começam com a letra “M”, por exemplo.
De fato, alguns estudos apontaram que, ao tomar modafinila, pessoas saudáveis apresentam melhora nos resultados desses testes. O que talvez seja menos divulgado é que essa melhora é para lá de discreta – muito longe do que seria necessário para transformar o medicamento em uma pílula mágica. O ganho de desempenho obtido com esse tipo de substância, na verdade, não é muito diferente daquele vindo do uso de cafeína. E ninguém parece muito inclinado a chamar as nossas xícaras de café de “xícaras da inteligência”.
Possivelmente por não entregar na prática nenhum resultado extraordinário, apesar da fama, a modafinila não deslanchou como um grande sucesso de mercado no Brasil. De 2014 a 2021, o número de caixas da substância vendidas por ano no país nunca chegou a superar os 80 mil. No último ano de dados disponíveis na Anvisa, em 2021, a quantidade de unidades comercializadas foi de 63 mil. Como comparação, o antidepressivo mais popular, o escitalopram, vendeu 15 milhões de caixas no mesmo ano. O ansiolítico mais vendido, o clonazepam, chegou a 18 milhões de unidades.
Venvanse: a vedete do momento
A falta de sucesso da modafinila como “pílula da inteligência” não impediu, no entanto, que outras substâncias tentem ocupar essa vaga no nosso imaginário. A vedete do momento é o dimesilato de lisdexanfetamina. Talvez você não conheça a substância por trás desse nome complicado, mas provavelmente já tenha ouvido falar do seu nome comercial: Venvanse.
Esse sim é um sucesso de vendas. Desde o lançamento a comercialização desse produto bate recorde em relação aos anos anteriores. No ano que começou a ser comercializado no Brasil, 2011, foram vendidas cerca de 11 mil caixas de Venvanse; no ano seguinte, esse número já tinha subido para cerca de 51 mil unidades. Na série histórica, esses números só foram aumentando até que, em 2021, foram 796 mil caixas.
Entre 2014 e 2021, o aumento relativo de prescrições de Venvanse foi de mais de 500%. No mesmo período, concorrentes como os que contém o estimulante metilfenidato, os tradicionais Ritalina, Concerta e Ritalina LA, registraram aumento de 50%
O Venvanse costuma ser chamado de “droga dos concurseiros”, porque é muito usada por essa categoria como forma de se concentrar nos estudos. No entanto, essa fama de “doping” para se dar bem nas provas é, de certa forma, uma lenda urbana. Assim como a modafinila, a lisdexanfetamina também melhora a performance em testes neuropsicológicos. Mas não há evidência de que essa melhora represente uma diferença significativa no resultado de concursos públicos ou exames de vestibular.
De acordo com um levantamento realizado por pesquisadores da Universidade de Hertfordshire no Reino Unido, os estudantes que recorrem aos estimulantes como o Venvanse na esperança de melhorar seu desempenho acadêmico são, na verdade, aqueles com os piores resultados. O que significa que, mesmo que eles tenham algum benefício advindo do uso de estimulantes, não é algo suficiente para transformá-los em estudantes melhores – ou “mais inteligentes”.
Acesso mais fácil
O Venvanse é uma anfetamina. É um tipo de substância que imita os efeitos da adrenalina, um hormônio que produzimos em situações de estresse, para nos colocar em um estado de luta ou fuga. As anfetaminas não são nenhuma novidade na área médica; estão, inclusive, entre os primeiros compostos sintéticos já utilizados para fins terapêuticos.
Pelo seu potencial de uso abusivo, as anfetaminas são consideradas medicações de uso controlado, sendo liberadas para uso somente em determinadas condições clínicas. Para comprar anfetamina na farmácia, é preciso ter uma prescrição médica feita com receita controlada. Portanto, é preciso uma doença clínica ou um transtorno psiquiátrico que justifique essa prescrição.
Isso significa que o sucesso comercial do Venvanse está atrelado a alguns diagnósticos médicos. Entre eles, o mais famoso é o transtorno de déficit de atenção, seja com ou sem hiperatividade.
Como todo derivado de anfetamina, além da melhora da atenção, o Venvanse tem outros efeitos colaterais: produz uma sensação de euforia e inibe o apetite. Essa combinação entre um suposto melhor desempenho cognitivo com perda de peso e sensação de bem-estar tem transformado o Venvanse na mais nova “pílula mágica” para pessoas saudáveis, mas insatisfeitas com o seu próprio desempenho acadêmico ou profissional, bem como com a sua imagem corporal.
Além dos atrativos da droga propriamente dita, o acesso ao Venvanse é facilitado. O transtorno de déficit de atenção – para o qual ele é indicado – tem como características sintomas que todas as pessoas – mesmo as saudáveis – já tiveram em momentos em que estavam ansiosas, chateadas, cansadas ou mesmo viciadas em redes sociais. Diante dessa combinação, o sucesso dessa droga não surpreende.
Nem sempre foi assim tão fácil receber o diagnóstico de déficit de atenção. Ele tradicionalmente foi postulado como uma doença do desenvolvimento cerebral, e para receber o diagnóstico, era preciso ter indícios claros de sintomas antes dos sete anos de idade. Sendo uma doença do desenvolvimento, não faria sentido que os sintomas começassem tardiamente.
Recentemente, no entanto, o critério que requeria o início dos sintomas na infância foi abandonado, o que abriu caminho para que pessoas que nunca tiveram qualquer dificuldade de desempenho marcante durante o desenvolvimento escolar possam ser consideradas portadoras do transtorno – e assim ganhem acesso às anfetaminas.
O que temos hoje então é um quadro onde aparece um remédio com fama de “doping” cognitivo, com um perfil atraente de efeitos colaterais para quem está insatisfeito com a imagem corporal, associado a um diagnóstico recentemente facilitado pelo relaxamento de critérios necessários para o seu reconhecimento. Se soma a isso o panorama social dos nossos tempos, marcado pelo excesso de informações, de constante sobrecarga, de longas horas de trabalho e de fácil acesso a entretenimentos de curtíssima duração – algo que favorece a desatenção e a fuga de tarefas longas e chatas, mas muitas vezes necessárias.
Essa é uma combinação que pode finalmente fazer sentido para o uso da expressão “farmacologia cosmética”, sugerida por Peter Kramer. O uso de um remédio psiquiátrico não para tratar sintomas de uma doença, mas sim como uma fórmula para transformar gente sadia em pessoas “especiais”, mais magras, inteligentes e capazes de tolerar longas horas de trabalho e sobrecarga de informação. Cabe agora descobrir qual o preço que iremos pagar por mais essa “pílula da inteligência”.
Juliana Belo Diniz é pesquisadora, psiquiatra clínica e psicanalista. Fez sua formação em Medicina pela Universidade de São Paulo e, pela mesma instituição, completou residência, doutorado e pós-doutorado em Psiquiatria.
Fonte: Le Monde Diplomatique