Como preservar uma cultura de moda

Entenda por que o Brasil virou tendência de estilo, e sua manufatura de luxo, não

Fala-se que o Brasil está na moda. Neste mês, uma constelação de grifes deu força à ideia, da espanhola Carolina Herrera, que armou um desfile suntuoso no Rio, à francesa Jacquemus, cuja coleção mais recente e cheia de acessórios de palha foi fotografada sob o sol carioca. Entre as sombras de São Paulo, por sua vez, a italiana Bottega Veneta levou seu projeto itinerante de arte, o “The Square”, para dentro da Casa de Vidro de Lina Bo Bardi. 

Até a revista “Vogue” francesa comentou o fato nas redes, neste junho fora da curva, quando percebeu haver celebridades demais usando verde e amarelo. “É a vez do ‘brazilcore’ se impor como principal tendência deste verão”, dizia o post da revista. É a “hottest trend” do momento, reiterou a versão em inglês do texto. 

Mas há um outro lado da cultura de moda brasileira que ainda enfrenta dificuldades, e que tem produzido esforços de preservação de técnicas e capital humano. Artesãos de rendas, bordados e costura manual lutam para manter vivos seus ofícios, agora escassos devido à baixa aderência dos jovens ao estudo dos saberes, em meio a importações dos produtos acabados em escala industrial. 

Nos últimos 12 meses, entre salões de arte, eventos de desfiles e lançamentos de coleções, o Valor ouviu empresários, agentes públicos, estilistas e os próprios artesãos para traçar o retrato dos negócios de moda vinculados à estética ancestral do país. 

Esta que, festejada como coração da manufatura de luxo nacional, soa mais como cereja de um bolo gigantesco da indústria da moda, que faturou R$ 196 bilhões no ano passado e se mantém entre os maiores empregadores do país, do que a massa de seus negócios. Esse é o vetor da produção de moda que melhor representa o “S” da palavra “social” na sigla ESG e o “E” do nome que resume o ideal de sustentabilidade. 

Embora as rendas brasileiras sejam um patrimônio cultural do país, agora em processo de catalogação pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a rendeira Maria de Fátima Gomes, de Orobó, no agreste pernambucano, não consegue ver o próprio patrimônio colher os louros desse ofício que deu fama à cidade. 

Peças da coleção 100% Ceará, no Festival Dragão Fashion Brasil 2023. Curadas por Cláudio Silveira, usam elementos de renda, crochê e macramê — Foto: Nicolas Gondim/Divulgação

Peças da coleção 100% Ceará, no Festival Dragão Fashion Brasil 2023. Curadas por Cláudio Silveira, usam elementos de renda, crochê e macramê — Foto: Nicolas Gondim/Divulgação

Em meio às centenas de expositores do salão de artesanato Fenearte, no Recife, em julho do ano passado, Maria de Fátima mostrava uma peça de renda frivolité enquanto lamentava o fato de ninguém querer pagar os R$ 800 cobrados pelos dois meses de trabalho – ao lado de tipologias como Tenerife, Renascença e Bilro, a dela é uma das mais complexas de executar. 

“Difícil saber se vou vender até o final da feira. Muitas vezes tenho de diminuir o valor, mesmo explicando a dificuldade”, disse. “Aqui [no Brasil] não valorizam muito, mas o pessoal de fora [empresários estrangeiros] compra, e sei que vira até roupa na França e na Itália”, afirmou. 

Rendas são ativos na cartilha das coleções de moda do hemisfério Norte e são objetos de desejo dos “traders”, que, no caso da costura, são especializados em encontrar matéria-prima. Na maioria dos casos, esse tipo de venda, feita em conjunto às cooperativas locais, compõe até metade do orçamento familiar. 

“O desafio dos governos é fazer com que o comprador chegue diretamente à fonte”, disse à época a então diretora de promoção do artesanato e da economia criativa de Pernambuco, Márcia Souto. 

Foi o que ocorreu, por exemplo, com a parceria entre a grife Alexandre Birman e o grupo de rendeiras de bilro do município de Saubara, no interior da Bahia, que resultou em uma coleção de sandálias lançada mundialmente em janeiro e fez a associação local aumentar de uma dezena para mais de 40 mulheres, a maioria marisqueiras do entorno. 

“Muitas marcas iam, viam a renda e recuavam. Não queriam se unir. Ganhamos a oportunidade de resgatar quem havia deixado de fazer renda para trabalhar na maré”, afirmou a líder do grupo, Maria do Carmo Amorim, na ocasião do lançamento da coleção, em Salvador. “Eu nunca achei que o meu trabalho era para estar em uma feira [popular]. É um negócio para lojas”, comemora. 

Look criado por Dinho Batista. A calça é feita com uma placa de fitas de gorgorão justaoistas — Foto: Gustavo Zylbersztajn/Divulgação

Look criado por Dinho Batista. A calça é feita com uma placa de fitas de gorgorão justaoistas — Foto: Gustavo Zylbersztajn/Divulgação

No lançamento da parceria no país, o estilista da marca, Guilherme Kfouri, afirmou que a recepção da coleção no varejo internacional havia sido positiva e destaca que “globalmente, o trabalho artesanal é o que diferencia um produto de luxo”, e, por isso, para as marcas brasileiras, “ele é um dos maiores trunfos” para se posicionar diante da concorrência. 

Além da renda, o crochê, o macramê e os traçados de palha são exaltados nas passarelas em um ritmo que dialoga tanto com as vitrines europeias quanto o desejo da clientela de alto padrão em consumir produtos texturizados, feitos à mão. 

A coleção de bolsas mais recente da Prada, por exemplo, é toda em palha de ráfia, assim como os acessórios exuberantes da espanhola Loewe lançados nos últimos cinco anos. Ao mesmo tempo, o padrão de couro trançado da Bottega Veneta, feito por artesãos do Vêneto, na Itália, voltou à ribalta por meio da coleção de roupas do novo estilista da grife, Matthieu Blazy. 

Recifense radicado em São Paulo, o estilista Dinho Batista reconheceu os gostos da clientela de luxo internacional e passou a morar cinco meses do ano em Nova York para revitalizar sua técnica de compor placas trançadas de cetim de gorgorão aplicadas em roupas de tintas minimalistas. 

A clientela de sua marca homônima vai da classe AAA de Long Island às primeiras-damas do Capitólio, entre as quais a mulher do senador republicano Jack Martins, Paula Martins. 

“Os americanos, de forma geral, têm uma tara por tudo o que vem da Itália, e, como minhas roupas são feitas por alfaiate, são bem aceitas. Quando digo que o trabalho é do Brasil, há uma surpresa inicial e muita comparação com o produto europeu, porque não estão acostumados a ver a artesania brasileira. É um sintoma dos nossos problemas. Quando uso seda, muitas vezes é mais barato importar da França do que comprar no país”, explica Batista. 

Bolsa da grife cearense Catarina Mina — Foto: Divulgação

Neste momento, o empresário negocia com um grupo de investidores estrangeiros a abertura de sua grife em solo americano, no próximo ano. “Mas tudo vai continuar sendo produzido aí [Brasil]. Talvez eu colabore para acabar com o preconceito da cliente brasileira de acreditar que o artesanato de moda não tem valor”, afirma o designer. 

O designer goiano Samuray Martins, radicado na Bélgica, estilista e dono da grife belga Akra Collection, especializada em peças de palha de buriti, afirma que o mercado atravessa um período de transição: a maioria das marcas procura exaltar o aspecto artesanal de suas peças, mas ainda não dá tanta visibilidade para o lugar de origem dos insumos. O empresário comanda uma rede de 250 artesãs do Maranhão, da Bahia e, mais recentemente, do Tocantins. 

Ex-sócio de uma empresa especializada em importação de insumos artesanais para grifes europeias, ele avalia ser necessário prestar atenção no discurso sustentável de algumas grifes. “Das que trabalhei de perto, [as grifes] Agnès B. e Isabel Marant [ambas francesas] foram as que tiveram o trabalho mais consistente.” 

No caso de Martins, cerca de 40% do valor da peça é destinado à mão de obra, qualificada nos últimos dez anos pelo braço de private label da empresa, o Projeto Akra. Por contrato, ele não pode revelar o nome das marcas para as quais produz além da própria, mas afirma que a relação transparente na cadeia de fornecimento garantirá que a cultura de moda brasileira não morra. “Agora, ela está adormecida, acordando”, diz. 

Se a tônica que definiu esse artesanato brasileiro de moda no século passado foi a de que “santo de casa não faz milagre”, e, por isso, o mercado internacional passou a ser uma opção para a manutenção dos negócios, a cearense Celina Hissa, da grife Catarina Mina, conseguiu conquistar um mercado e, apoiada pela rede de artesãs próximas da capital Fortaleza, foi capaz de imprimir inicialmente em bolsas, e, mais recentemente, roupas, o trabalho exímio de crochê e macramê do estado com um desenho mais arrojado. 

Celina Hissa passou a viajar para as comunidades e, por meio de parcerias público-privadas, auxiliou na formalização de sua mão de obra – a informalidade continua, afirmam as fontes, sendo o principal fator a impedir o mercado de dar uma escala maior à cultura de moda no país – e dar treinamento de moda. 

“Não está na planilha de uma grife fazer esse tipo de coisa, mas, para mim, é fundamental, tanto pelo lado do desenvolvimento de produto quanto do ponto de vista da governança. A empresa está crescendo e, para manter assim, preciso estar junta [das artesãs]”, explica Hissa. “E não dá para você fechar uma parceria e sumir depois. Isso precisa ser constante para manter o trabalho manual.” 

O projeto Olê Rendeiras, que fundiu as técnicas das artesãs de renda de bilro do Ceará ao estilo da Catarina Mina, e o mais recente, o Travessias Artesanais, que ainda convida outros designers cearenses para criarem em parceria com a rede de 300 artesãos da grife, são bons exemplos do que é possível ser feito para garantir o futuro dessa tal “brasilidade”. 

E não é um trabalho social. Após a pandemia de covid-19, as grifes de moda passaram a olhar com atenção seus fornecedores, como já faziam gigantes como Hermès, que ao longo dos anos comprou parte das empresas de sua cadeia de fornecimento, e Chanel, proprietária de ateliês lendários de bordados, chapéus e joias franceses, adquiridos por meio da subsidiária Paraffection, de sua holding controladora. 

No Brasil, o grupo Soma passou a alocar dinheiro para manter ativa sua base de fornecimento especializado da grife Animale, e, a partir da França, a Dior expandiu suas parcerias com alguns fornecedores da Índia, Espanha e do México para promover desfiles que ofereçam uma vitrine para os artesãos desses países. 

“O departamento de operações e criação fez um trabalho de mapear e capacitar fornecedores, principalmente nas áreas de alfaiataria e seda, para que a gente pudesse ter uma produção em linha com o lugar ‘premium’ próprio da história da Animale […] No reposicionamento que fizemos, encontramos uma indústria esvaziada, uma rede que, de certa forma, estava sucateada. Queremos regatá-la na busca de um produto essencialmente ‘made in Brazil’”, diz a CEO da marca, Isabel del Priore. 

O esforço recente dentro dos conglomerados de marcas especializadas ainda não chegou na mesma medida à indústria. “Os negócios, hoje, são movidos à escala. Todo mundo anda querendo ajudar comunidades, mas não têm a paciência de formá-la”, afirma o diretor da plataforma de desfiles autorais Dragão Fashion Brasil, de Fortaleza, Cláudio Silveira. 

Entusiasta da inserção do artesanato nas passarelas brasileiras, há 25 anos ele leva milhares de pessoas a acompanhar os desfiles de estilistas que, em sua maioria, utilizam essa mão de obra em suas coleções. Nomes fortes da ala do design nacional, como David Lee e Marina Bitu, nasceram no evento cearense. 

“A questão política também é muito importante para entender por que a cultura de moda é ameaçada. Quando muda um governo, muda a política pública, importante para fazer as conexões entre as pastas e os bancos públicos, essenciais no processo. O Sebrae é o órgão mais presente na formação desses artesãos, enquanto a indústria têxtil, que deveria estar interessada [no tema], não encampa a missão”, afirma o empresário. “A verdade é que quase ninguém quer dispensar dinheiro nisso. Falta inteligência, porque seria uma oportunidade de o próprio produto das empresas ser apresentado de uma forma original. O investimento delas fica sempre restrito ao varejo de massa”, acrescenta. 

Não é que faltem projetos de política pública para o setor da moda. De dez anos para cá, tentou-se desde colocar desfiles pontuais no escopo da Lei Rouanet, na gestão da ex-ministra da Cultura Marta Suplicy (2012-2014), até criar políticas de incentivo fiscal para os arranjos produtivos dos estados, como fez o Rio de Janeiro, em 2012, e São Paulo, em 2017, por meio de decretos de isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para confecções – que já devem ser revistas numa possível reforma tributária. 

Nenhuma delas integrou os espectros de cultura, desenvolvimento econômico e social, meio ambiente e turismo, o que, segundo especialistas, forma um conjunto de pilares do sistema da moda que gera resultados no desenvolvimento da cultura têxtil dos países, um modelo que ajudou no posicionamento de países escandinavos e do Japão, por exemplo, no século passado. 

Tramitam nas mesas dos gestores de economia criativa, a pasta em que a moda costuma estar incluída nas discussões dos agentes públicos, novos formatos de projetos para o setor. A nova gestão em Pernambuco deve alterar a forma com a qual divulga o produto de moda artesanal no estado, e Minas Gerais, agora com gestões aliadas nas esferas estadual e municipal, no caso, a da capital Belo Horizonte, lançou em abril o projeto de integração Passarela Liberdade. 

Entre as ações, será criado um selo de certificação “feito em Minas” para produtos de moda, assim como já ocorre com os queijos artesanais do estado. São estudados ainda programas de benefício fiscal específicos para os diferentes elos do setor – o bordado, por exemplo, é o principal ativo do estilo artesanal mineiro – e a expansão do programa de capacitação em costura de mulheres vítimas de violência doméstica, que hoje atua em 38 cidades. 

“A gente entendeu que o nosso trabalho é ouvir as demandas, reconhecendo a importância de colocar a moda no lugar de vetor artístico e cultural, não no lugar de futilidade que muita gente coloca. O problema sempre foi a mobilização, e é isso que queremos mudar”, afirma a secretária-adjunta de Cultura e Turismo do estado, Milena Pedrosa. 

Há um outro ponto, no caso da moda mineira, que tira o sono das pequenas e médias empresas especializadas em moda festa, a falta de bordadeiras. 

Nos corredores do Minas Trend, o principal evento de tendências para o segmento de longos e roupas rebuscadas do país, os pontos de brilho costurados perderam a relevância nas araras. 

“Além dos materiais terem subido de preço na pandemia, porque só o pacote de pedrarias banhadas a ouro passou de R$ 500 para R$ 800, as bordadeiras deixaram o ofício quando se viram sem trabalho [no vazio de eventos provocado pelo isolamento para mitigar a contaminação por causa do coronavírus]. As que sobraram hoje cobram o dobro do preço”, explica a empresária Carolina Malloy, sócia da irmã, Marcela, na grife Arte Sacra. “Trazê-las de volta é difícil, já tive 50 só trabalhando comigo. Pode ser que seja só um movimento cíclico, e, quando passar essa onda minimalista das clientes, a demanda normalize.”

Fonte: Valor

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